Danielle Farias é educadora
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Nos últimos dias, a internet foi tomada por vídeos, fotos e reportagens sobre adultos cuidando de bonecas reborn como se fossem filhos reais. Mas isso não é novidade. A pergunta que fica é: por que agora esse assunto incomoda tanto? E o que ele revela sobre nós?
Boneca Reborn
Bebês reborn são bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos. Algumas pessoas as tratam como filhos: alimentam, vestem, colocam nome, levam ao shopping, criam quartos temáticos e até perfis nas redes sociais. À primeira vista, pode parecer apenas um hobby ou um passatempo excêntrico. Mas o que está por trás disso é bem mais sério — e inquietante.
Sociedade
Vivemos em uma sociedade obcecada por aparência. As pessoas preferem parecer saudáveis do que realmente cuidar da saúde. Tomam remédios para ansiedade, fazem procedimentos estéticos, filtram a realidade. Preferem parecer felizes, realizadas, plenas… mas evitam processos. Evitam esforço. Evitam dor.
Ser Mãe

Com a maternidade não tem sido diferente. Ser mãe é algo profundo, trabalhoso, cansativo e cheio de renúncia. Mas no mundo da performance, é mais confortável parecer mãe do que viver de fato essa experiência. A boneca reborn entra como um símbolo desse tempo: um bebê que não chora, não exige, não interrompe o sono. Um bebê que pode ser cuidado dentro dos limites da fantasia, da estética, da rede social. Um bebê sem subjetividade, sem história, sem peso real.
Uma recompensa
E enquanto bonecas ganham enxoval, roupinhas e afeto, milhões de crianças reais estão invisíveis, esperando afeto, colo, proteção e oportunidades. Crianças sem pai, sem mãe, sem lar — em situação de abandono emocional, institucional ou material. Mas elas exigem tempo, presença, escuta. A boneca não. A boneca recompensa sem pedir nada.
Adoção
É doloroso pensar que, ao mesmo tempo em que se investe tanto em simular uma maternidade perfeita com bonecas, existem milhares de crianças no Brasil e no mundo aguardando por adoção. Crianças reais, em abrigos, orfanatos ou até mesmo nas ruas, que só querem um lar, um nome, alguém que não desista delas. Adotar uma criança exige coragem, entrega, constância — exige estar disposto a amar de verdade. E talvez seja isso que falta.
Traumas afetivos
Alguns especialistas apontam que, em certos contextos, cuidar de bonecas reborn pode ser uma forma de elaborar o luto ou amenizar traumas afetivos. Sim, isso pode existir. Mas é muito diferente da banalização que vemos hoje nas redes sociais. Existe um abismo entre um processo terapêutico acompanhado e uma maternidade cenográfica para gerar engajamento.
Judicial
E o mais assustador: há casos reais de disputa judicial por guarda de bonecas, perfis monetizados de bebês reborn e até pessoas levando essas bonecas para consultas médicas. Isso não é mais só um hobby. É um sintoma. Um reflexo de uma sociedade viciada em gratificação instantânea, que não quer viver o processo. Uma sociedade que copia frases, compra tudo pronto, simula vínculos e se afasta cada vez mais da profundidade das relações humanas.
Vidas desamparadas
Não se trata de condenar quem gosta de bonecas. Mas sim de provocar uma pergunta incômoda: por que estamos buscando vínculos onde não há vida, enquanto deixamos vidas reais desamparadas?
Coragem
Porque cuidar de uma boneca é fácil. Cuidar de uma criança exige coragem. E talvez o que esteja em falta não sejam filhos, mas adultos dispostos a crescer com eles.

Danielle Farias é psicopedagoga do Instituto Acreditar Maria de Lurdes, do município de Tailândia-PA